terça-feira, 23 de outubro de 2007

7.

Tens a mania, tu. Tens a mania, que dizem dela ser uma meretriz. A puta da mania. Ris-te, descarado, olhos nos olhos, pés firmes, peito cheio daquilo que se diz ser confiança. És egocêntrico, manipulas, chamas para ti as conversas paralelas. Ouves, opinas, contestas, provocas. Provocas. Ah, como eu gosto quando o fazes. O olhar rasgado, o olhar que dança, o olhar que foge quando sabe que já não está sozinho. O sorriso maroto, o sorriso perverso, o sorriso que desarma, quando me agarra. És arrebitado, espevitado. Como eu gosto quando arrebitas, quando me enfrentas, quando não me ligas, quando não me apareces e me deixas assim. Queria dizer-te coisas, contar-te histórias, contar-te todas as coisas parvas que te digo, quando me esvazias da razão, quando me tiras a língua e a deixas sem abrigo. Como eu queria sentar-te a meu lado, só a meu lado, em cima daquela almofada que te acaricia a face todos os dias. Sentava-te ali, e não havia mais ninguém. Concorrência arrasada, fazia-te meu, enchia-me de ti até não mais poder. Tens a mania. Entras, enches-me as noites de coisas que não tenho, enches-me as noites de pensamentos parvos, enches-me as noites de solidão estúpida. Deixas-me parva, e assim te odeio. Odeio-te, por todas as vezes que os meus dedos quiseram escrever o teu nome sem te terem sentido ainda.

sábado, 6 de outubro de 2007

6.

Vem. Quero que me vejas. Quero que sintas a minha presença. Quero que me peças os números da minha vida, os endereços dos meus dias e que me visites. Quero fazer contigo todas as banalidades mundanas, os cafés em mesas anónimas, os guardanapos dobrados em barquinhos infantis, os silêncios esquisitos, as risadas incomodas, os erros embaraçosos. O cheiro a pipocas, os tickets de compras, os jantares desequilibrados, os convites com segundas intenções. Quero que me contes o teu primeiro dia de escola, o teu primeiro amor, o teu prato favorito, o teu modo de ver a vida, a morte, as bolachas, o crescer das ervas daninhas, a pavimentação das estradas. Quero pegar-te na mão e não ter medo do buraco-na-estrada, de acreditar na tua cor preferida e de te sentir o paladar. Quero adivinhar-te pelo cheiro, chamar-te com o pensamento e adormecer ao som do teu contar de estrelas.
Mas antes, quero que me vejas.

5.

Deixa-te assim, ficar aí, para que te contemple. Dispo-te com os olhos, e não sei do que és feito. Não me interessa. Faço-te cada linha, traço, curva. Sei de que formas vestes os teus dedos. Cada um. Sei de que modo os agitas e remexes. Como pegas no que tomas para ti. Sei-te a forma das unhas, das cutículas, dos nós. Adivinho-te o toque, prendo-me ao malabarismo dos teus dedos. Dispo-te as mãos, querendo fazer-las minhas.

4.

Posso abrir-te ao meio? Separar-te as costelas em dois? E espreitar. O coração, as artérias, as veias, o sangue que corre. O teu. Venoso, não venoso, os nutrientes, os sucos, as enzimas. Os alvéolos que incham, a bexiga que cresce, as articulações que estalam.
E sabes, ainda assim, continuaria a ver nada-de-ti. Tudo o que te transpira é movido por um algo maior. É esse algo que te brilha nos olhos, te sorri nos lábios, te tinge as bochechas, te molda cada arrebitar de cabelo. É essa espécie de essência que te faz tão longe daquilo que eu conheço, e ao mesmo tempo, tão perto no desejo de te querer aqui. De te ter aqui, de te dizer que já guardo os teus olhos desde a primeira vez que tos vi, de relance, a medo. Guardo-os aqui, roubei-os, sem que soubesses. Tenho tido vontade de lhes fazer perguntas, daquelas que só eles poderiam responder. Sou muda, por agora, de língua enrolada de medo de um olhos teus.

3.

Deita-te. Vira-te para o teu lado favorito. Enrosca os pés no lugar mais quente, deixa os joelhos descreverem um ângulo recto. Junta as tuas mãos, no peito. Consegues, com o ouvido na almofada, ouvir o coração que bate. Sente agora os dedos que não são teus. Descrevem pequenos movimentos na tua face. Trajectórias estratégicas, muito leves, compassadas pela tua respiração. Agora, o nariz. Sentes o nariz mimado. Depois, o dedo que foge e te conta as pestanas. Sabes que ele virá, o beijo na testa, como nos teus dias de criança. Adeus, dorme bem, com certezas de dias felizes. Amanhã, volto. Ainda que não o saibas.

2.

Deixa-me visistar-te. Deixa-me entrar, olhar-te, e sentir-me tomada nos teus braços.”Olá, como estás?”, conversa banal, risos sinceros, parvoíces diversas. “Vem, senta-te aqui.” Beber das tuas palavras, olhares esquivos, nervosismo disfarçado. “Está tudo bem, como sempre na mesma”. É a vida, fim da história. Levanto-me, aperto no coração, mãos quietas. Adeus, até logo.
Se por uma vez pudesse demorar-me uma vida.

1.

Hoje vi as horas e decidi um tempo que não se mede. Hoje ficas comigo, fazes de todos os segundos compassos de espera que não-mais-acabam. Por hoje, os ponteiros não andam. Só mesmo porque não quero, não posso, não tolero que me deixes, agora que te fiz. Hoje vais estar comigo e fazer-me-ei companhia. Não estou sozinha, construí-te. Juntei-te pedaço a pedaço. Pedaços de ti, tantos, todos me são. Hoje vens, entras no meu peito em pezinhos-de-lã. Encher-me-às de promessas reais, de palavras que não existem sem ti, de tudo o que não tenho mais, porque te dei. Hoje vens, entras no meu peito, e ficas até ao dia-que-não-mais-virá. Farás dos meus cabelos pouso para os voos das tuas carícias, farás da minha face caminho para o correr dos teus dedos. Até que as minhas pálpebras se fechem, e guardem o rosto que te fiz, os olhos que te dei. Hoje ficas comigo, enquanto durmo, protagonista da história da minha criação.